A Razão na História:
Uma Introdução Geral à Filosofia da História
II. A RAZÃO COMO BASE DA HISTÓRIA
O único pensamento que a filosofia traz para o tratamento da história é o conceito simples de Razão, que é a lei do mundo e, portanto, na história do mundo as coisas aconteceram racionalmente. Essa convicção e percepção é uma pressuposição da história como tal; na própria filosofia a pressuposição não existe. A filosofia demonstrou através de sua reflexão especulativa que a Razão — esta palavra poderá ser aceita aqui sem maior exame da sua relação com Deus — é ao mesmo tempo substância e poder infinito, que ela é em si o material infinito de toda vida natural e espiritual e também é a forma infinita, a realização de si como conteúdo. Ela é substância, ou seja, é através dela e nela que toda a realidade tem o seu ser e a sua subsistência. Ela é poder infinito, pois a Razão não é tão impotente para produzir apenas o ideal, a intenção, permanecendo em uma existência fora da realidade — sabe-se lá onde — como algo característico nas cabeças de umas poucas pessoas. Ela é o conteúdo infinito de toda a essência e verdade, pois não exige, como o faz a atividade finita, a condição de materiais externos, de meios fornecidos de onde extrair-se o alimento e os objetos de sua atividade; ela supre seu próprio alimento e sua própria referência. E ela é forma infinita, pois apenas em sua imagem e por ordem sua os fenômenos surgem e começam a viver.
A observação a seguir deixa claro o pensamento de Hegel sobre Deus, que para ele é a Razão Absoluta ou a Idéia Absoluta. Quando se refere à Razão neste trecho de texto é a razão pura e simplesmente. Desvinculada com qualquer relação com a divindade.
“A filosofia demonstrou através de sua reflexão especulativa que a Razão — esta palavra poderá ser aceita aqui sem maior exame da sua relação com Deus —“
Logo em seguida Hegel faz toda uma apologia a esta mesma razão que, mesmo desvinculada de Deus é detentora de uma série de atributos.
Pag. 55
Em tudo o que se supõe ser científico, a Razão deve ser alerta e a reflexão
deve ser aplicada. Para quem olha racionalmente para o mundo, o mundo olha de
volta racionalmente. A relação é mútua.
Hegel afirma que a Razão já dominou no mundo em dois aspectos:
1. O primeiro aspecto é o fato histórico do grego Anaxágoras, o primeiro a
mostrar que a mente , a compreensão em geral ou a Razão, domina o mundo — mas não uma inteligência no sentido de uma consciência individual, não um espírito como tal. Os dois devem ser cuidadosamente distinguidos. O movimento do sistema solar continua segundo leis imutáveis e estas leis são a sua razão. Mas, nem o sol nem os planetas, que, segundo tais leis, giram em torno dele, têm qualquer consciência disso. Assim, não nos surpreende a idéia de que há Razão na natureza, de que a natureza é governada por leis universais e imutáveis — estamos habituados
a isso e não lhe damos muita importância. Esta circunstância histórica também nos ensina uma lição de história: as coisas que parecem comuns para nós nem sempre estiveram no mundo; um pensamento novo como esse marca uma época no desenvolvimento do espírito humano. Aristóteles diz que Anaxágoras, como originador deste pensamento, parecia um homem sóbrio entre os bêbados.
Pag. 56
É evidente que a insuficiência que Sócrates descobriu em Anaxágoras nada tem a ver com o princípio em si, mas com a falha de Anaxágoras em aplicá-lo à natureza concreta. A natureza não foi entendida ou compreendida através deste princípio; o princípio continuou abstrato — a natureza não foi compreendida como um desenvolvimento da Razão, como uma organização produzida por ela.
Num primeiro momento Hegel nega a natureza como produto da razão, aquela razão desvinculada da divindade. Para logo em seguida estabelecer uma nova perspectiva. Perspectiva na qual a Razão/Pensamento possa produzir a concretude. Ou não seria isto?
2. O segundo ponto é a ligação histórica do pensamento de que a Razão governa o mundo com uma outra forma, bem conhecida para nós — a forma da verdade religiosa: o mundo não está abandonado ao acaso e a acidentes externos, mas é controlado pela Providência. Eu já disse antes que não exijo a crença no princípio anunciado, mas penso que poderia apelar a esta crença em sua forma religiosa, a menos que a natureza da filosofia científica impeça, como regra geral, a aceitação de quaisquer pressuposições; ou, visto por outro ângulo, a menos que a própria ciência que desejamos desenvolver dê provas, senão da verdade, pelo menos da exatidão de nosso princípio. A verdade de que uma Providência, ou seja, uma Providência divina, preside aos acontecimentos do mundo corresponde ao nosso princípio, pois a Providência divina é a sabedoria dotada de infinito poder que realiza o seu objetivo, ou seja, o objetivo final, racional e absoluto do mundo. A Razão é o Pensamento determinando-se em absoluta liberdade.
Falando de Religião e Previdência Divina.
Hegel desmente a Providência e Deus tal qual definido pelas religiões e estabelece o primado da Razão.
Mas para isso é necessário defini-la.
Pag. 57-60
Ela se opõe no mínimo à aplicação generalizada de nosso princípio, ao conhecimento do plano da Providência. É verdade que em casos especiais se permite isso aqui e ali, quando as mentes piedosas enxergam em certos acontecimentos não apenas o acaso, mas a vontade de Deus — quando, por exemplo, um indivíduo em grande perplexidade e necessidade obtém uma ajuda inesperada. Mas esses exemplos estão limitados aos propósitos particulares deste indivíduo. Na história do mundo, os “indivíduos” de quem devemos tratar são os povos, eles são totalidades que são Estados. Não podemos, portanto, estar satisfeitos com o que chamamos de visão “pormenorizada” da fé na Providência, nem com a fé indeterminada, simplesmente abstrata, na afirmação universal de que existe uma Providência, sem a determinação de seus atos definidos.
Ao contrário, devemos tentar seriamente reconhecer os caminhos da Providência, os
seus significados e as suas manifestações na história, e seu relacionamento com o
nosso princípio universal.
Mas, ao mencionar qualquer reconhecimento do plano da Providência divina, toquei em uma questão proeminente em nossos dias, a questão de saber-se se é possível reconhecer a Deus — ou, a partir do momento em que isso deixa de ser uma discussão, a doutrina, que agora se tornou um preconceito, de que é impossível
conhecer a Deus. Seguindo esta doutrina, agora contradizemos aquilo que ordena a
Sagrada Escritura como nosso mais elevado dever, ou seja, não apenas amar, mas também conhecer a Deus. Categoricamente agora negamos o que está escrito, ou seja, que é o espírito que leva à verdade, que conhece todas as coisas e que penetra até mesmo as profundezas da divindade. Assim, ao colocar o Ser Divino além de nosso conhecimento e do âmbito de todas as coisas humanas, obtemos a permissão muito conveniente de satisfazer às nossas fantasias. Estamos liberados da necessidade de atribuir o nosso conhecimento ao Verdadeiro e Divino. Ao contrário,
a vaidade do conhecimento e a subjetividade do sentimento têm agora ampla
justificação. A humildade piedosa, ao manter o verdadeiro reconhecimento de Deus
ao alcance da mão, sabe muito bem o que obtém por seu esforço arbitrário e vão.
Eu gostaria de discutir a ligação da nossa tese — de que a Razão governa e governou o mundo — com a questão do possível conhecimento de Deus, principalmente para que se possa mencionar a acusação que a filosofia evita ou deve evitar, a discussão de verdades religiosas, porque ela tem, por assim dizer, uma consciência má a respeito destas verdades. Ao contrário, o fato é que nesses últimos tempos a filosofia teve de assumir a defesa de verdades religiosas contra muitos sistemas teológicos. Na religião cristã Deus Se revelou, o que significa que Ele deu ao homem a capacidade de compreender o que Ele é, não sendo mais oculto e secreto. Com esta possibilidade de conhecer a Deus, a obrigação de conhecê-lo nos é imposta. Deus deseja estreitar as almas e esvaziar a mente de seus filhos; Ele quer o nosso espírito, em si realmente pobre, rico no conhecimento Dele, sustentando que este conhecimento seja de supremo valor. O desenvolvimento do espírito pensante
só começou com esta revelação da essência divina. Ele agora deve progredir em direção à compreensão intelectual do que originalmente estava presente apenas para o espírito que sentia e imaginava.
[O sentimento é a forma inferior em que pode existir qualquer conteúdo mental. Deus é o Ser Eterno em e para si mesmo; aquilo que é original em e para si mesmo é sujeito do pensamento, e não do sentimento. É verdade que tudo que é espiritual, todo o conteúdo da consciência, qualquer coisa que é produto e sujeito do pensamento — em especial a religião e a moralidade — também deve, e originalmente o faz, existir no modo do sentimento. Mas o sentimento não é a fonte de onde este conteúdo flui para o homem, mas apenas um modo primitivo em que ele existe no homem. É realmente o pior modo, um modo que o homem tem em comum com o animal. O que é substancial também deve existir no sentimento,
mas existe principalmente em uma forma superior, mais dignificada. Se se deseja relegar conteúdo moral, mais verdadeiro, o mais espiritual, ao sentimento e à emoção, mantendo-o ali em cima do princípio geral, deve-se atribuir a este conteúdo essencialmente a forma animal — mas esta não é de maneira alguma capaz de conter o espírito. No sentimento, o conteúdo mental é o menor possível, está presente em sua forma mais baixa possível. Até onde ele ainda estiver no
sentimento, está velado e totalmente indefinido. Ainda é inteiramente subjetivo, presente exclusivamente na forma subjetiva. Se alguém diz: “Sinto isso e isso assim e assim”, essa pessoa isolou-se em si mesmo. Todo o resto das pessoas tem o mesmo direito de dizer: “Não sinto nada disso”. E assim o indivíduo saiu do terreno comum de entendimento. Em assuntos totalmente pessoais, o sentimento está em todo o seu. direito. Sustentar que todos os homens tenham isso ou aquilo em seu sentimento é uma contradição em termos; contradiz o conceito de sentimento, o
ponto de vista da subjetividade individual de cada um que assumiu esta afirmação.
Enquanto o conteúdo mental é colocado no sentimento, todos estão reduzidos a seu ponto de vista subjetivo. Se alguém chama a outro desse ou daquele epíteto, o outro estaria autorizado a devolver-lhe, e ambos, a partir de seus respectivos pontos de vista, estariam autorizados a ofender-se mutuamente. Se alguém diz que tem a religião em seu sentimento e o outro, que não vê nenhum Deus em seu sentimento, ambos estão certos. Se nesta maneira o conteúdo divino — a revelação de Deus, o relacionamento de Deus ao homem, o ser de Deus para o homem — está reduzido ao sentimento puro, ele está reduzido à subjetividade pura, ao arbitrário, ao
capricho. Dessa maneira, o indivíduo realmente se livra da verdade como ela é em e para si mesma. A verdade é universal em e para si mesma, essencial, substancial; como tal ela só pode estar no e ser para o pensamento.. ]
Finalmente chegou o momento para compreender também o rico produto da Razão criativa que é a história do mundo.
Por algum tempo foi moda admirar-se a sabedoria de Deus nas vidas dos animais, das plantas e dos seres humanos. Se admitimos que a Providência se manifesta nesses objetos e nesses materiais, por que não também na história do mundo? Porque seu alcance parece ser grande demais; no entanto, a sabedoria divina, ou Razão, é a mesma tanto no grande quanto no pequeno. Não devemos imaginar que Deus seja fraco demais para exercer a sua sabedoria em uma grande escala. Nossa luta intelectual visa reconhecer que aquilo que a sabedoria eterna tencionava ela na verdade realizou, dinamicamente ativa no mundo, ao mesmo tempo no reino da natureza e no reino do espírito. Neste aspecto o nosso método é uma teodicéia, uma justificação de Deus, algo que Leibniz tentou metafisicamente, à sua maneira, através de categorias abstratas indeterminadas.
Nestes termos o mal no mundo seria compreendido e a mente pensante estaria reconciliada com ele. Não existe realmente em lugar algum maior desafio a esta reconciliação do que na história do mundo. Essa reconciliação só poderá ser atingida através do reconhecimento dos elementos positivos em que o elemento negativo desaparece como algo subordinado e derrotado. Isto é possível, por um lado, através da consciência do verdadeiro objetivo fundamental do mundo e, por outro lado, na consciência do fato de que este objetivo foi realizado no mundo e que o mal não
pode finalmente prevalecer além dela. Para este fim a simples crença no e na providência não bastam. A “Razão”, que se diz governar o mundo, é uma expressão tão indefinida quanto a “Providência”. Sempre se fala de Razão sem a capacidade de indicar sua definição, seu conteúdo, que sozinho nos permitiria julgar se alguma coisa é racional ou irracional. O que precisamos é de uma definição adequada de Razão, pois sem esta definição não podemos ir além de simples palavras. Com isso, vamos ao segundo ponto que desejamos levar em consideração.
Nenhum comentário:
Postar um comentário