Houve primeiro as religiões da natureza: "O espirito ainda está em umidade com a natureza... a divindade é em toda a parte o conteúdo; mas aqui é Deus na unidade natural do espiritual e do
natural; o modo natural é o que determina essa forma religiosa".
A esta fase pervencem a magia direta ou indireta, e a antiga religião da China, a do Tao. Esta última já representa um progresso, visto que aflora aí, no seio das superstições mais comuns, a presença de uma entidade universal.
As religiões que Hegel designa como religiões da substancialidade formam o segundo estágio desse primeiro momento: budismo e bramanismo são analisados. O terceiro estágio é o da subjetividade
abstrata: a divindade se dissocia da substancialidade e se concebe como princípio espiritual, como Bem que se opõe à exterioridade natural e triunfa - é a vitória de Ormuzd, a luz, sobre Ahriman, as trevas, no culto dos parses —; com a religião egípcia, o princípio se torna representação ou, melhor ainda, símbolo. Assim:
A história de Osíris... é a história interior essencial do ser natural da natureza do Egito, que compreende o sol, sua trajetória o Nilo, o princípio da fecundação e o princípio da mudança da transformação. A história de Osíris é, em conseqüência, a do sol. Este se eleva até seu ponto culminante, depois volta para trás. Os raios, sua força exaurem-se, mas após esse esgotamento, esse enfraquecimento, ele recomeça a elevar-se, e renasce.
Osíris significa o sol, e o sol, Osíris O sol é compreendido como movimento circular, e o ano como um sujeito percorrendo espontaneamente esses diversos estados.
Em Osíris, a natureza é compreendida de modo a simbolizar Osíris. Osíris é o Nilo que se avoluma fecunda tudo, transborda, e torna-se pequeno e fraco com o calor — e aqui representa o principio nefasto — mas que em seguida recupera suas forças. O sol, o ano e o Nilo são compreendidos como movimento circular, retornando sobre si mesmo. Os diferentes aspectos dessa trajetória são representados como momentos independentes, como deuses particulares que simbolizam cada um deles um aspecto, um momento dessa trajetória É correto dizer que o Nilo é o princípio interior, que o sol, bem como o Nilo significam Osíris, e que os outros deuses são divindades do calendário.
Essa forma primordial, mas exterior, de existência, é expressa na obra de arte, nessas construções grandiosas e maciças edificadas pela comunidade. Porém, como subjetividade permanece nela no
estágio abstrato da representação, ela mal consegue se desprender da substancialidade natural; não tendo uma consciência clara de si, manifesta-se na "linguagem muda dos monumentos de pedra". O
que ela oferece é um enigma:
A inscrição no templo da deusa Neith no Baixo-Egito se enuncia assim: 'Eu sou o que foi, o que é, o que será; nenhum mortal ergueu ainda meu véu, o fruto de meu corpo é Hélio.' Esse ser ainda oculto proclama a claridade, o sol, a consciência clara de si mesmo; o sol espiritual como o filho que nascerá dele.
É essa claridade realizada pelas formas religiosas que devemos examinar agora, isto é, a religião da beleza, ou religião grega, e a religião do sublime, ou religião judia. O enigma aí se acha resolvido; um mito significativo e admirável nos mostra a esfinge morta por um grego, e o enigma é assim decifrado: o conteúdo é o homem, o espírito livre que se conhece.
O segundo estágio da religião determinada (ou étnica) vai levar a cabo a cisão do natural e do espiritual; distingue-os seja para rejeitar a natureza ao lado do nada, para fazer da divindade a única realidade, seja para recombiná-Ias conscientemente, na beleza, sob a própria égide do homem. O judaísmo, de um lado, o helenismo e sua repercussão romana, do outro, constituem os momentos dessa religião da espiritualidade abstrata. Na análise que consagrou a isso, Hegel reorganiza todos os materiais de seus trabalhos de juventude. Mostra como cada um desses povos desenvolveu,
abstrata e unilateralmente, um dos dois aspectos que vão permitir a manifestação da religião absoluta O judaísmo compreendeu a divindade como realidade e liberdade infinitas, infinitamente à
distancia do homem; mas este foi entregue à sua finitude culpada; os gregos compreenderam a necessidade da mediação; conceberam-na como se dando somente na equivoca infinitude da obra de arte (ou da obra política particular); quanto ao verdadeiro infinito, eles o abandonaram ao mistério do Destino. A romanidade recolhe essa concepção e, mais abstratamente ainda, desenvolve-a, preparando,
pela sua aspiração universalista, o caminho do cristianismo, mas a ele se opondo também, em razão da visão abstrata e superficial que ela tem do homem e da divindade.
Assim, "durante milhões de anos, o trabalho do Espírito consistiu em realizar a noção da religião. e jazer dela o objeto da consciência". O que é a Religião em sua essência, o que é Deus, e como deve ser conhecido, doravante o sabemos. A história do pré-cristianismo e a do cristianismo nos informam. Dito dessa forma, parece afinal que esse conhecimento da religião (e de Deus) constitui e próprio Saber absoluto. Hegel não declara guerra aos pensadores do Aufklarung (Iluminismo), que conceberam todas as religiões primitivas como superstições, que criticaram a fé em nome das "luzes", e tentaram, contra todo bom senso, elaborar um substituto para esse conteúdo concreto: a realidade do culto, os quadros vazios da "religião natural"? Não escreve ele que
o Aufklarung (Iluminismo), essa presunção do entendimento, é o adversário mais virulento da Filosofia; não entende quando esta mostra o que está certo na religião cristã, quando faz ver que o testemunho do espírito da verdade está depositado na Religião. É por isso que a Filosofia deve mostrar a Razão contida na Religião?
Não determina, um pouco mais à frente, que
a filosofia oferece asa reconciliação (entre a Religião e a Filosofia); nesse sentido, é uma teologia, apresenta a reconciliação de Deus consigo mesmo e com a natureza estabelecendo que a natureza, a alteridade, é em si divina e que o espírito finito deve em si mesmo elevar-se à reconciliação, realirá-la na História universal. Essa reconciliação é a paz divina que não é superior a qualquer razão, mas que é conhecida pensada e reconhecida como verdadeira, divina por meio da razão?
Surge aqui, seguramente, o problema do ateísmo de Hegel! Essa questão se complicou ainda mais depois que marxistas e antimarxistas a associaram, na maioria das vezes inabilmente, com a questão de sua atitude política. Na verdade, a única questão á qual se pode tentar responder legitimamente é essa — que deixa de lado as disposições subjetivas de G.W.F. Hegel, cujo interesse é apenas
anedótico —: Podemos considerar que existe no sistema hegeliano coincidência ame a religião que conseguiu alcançar o conhecimento de si e o Saber absoluto? A resposta é evidentemente positiva. Os
textos estabelecem a validade dessa equação: Religião corretamente conhecida = Saber absoluto. Mas é aqui, precisamente, que se introduz a diferença, que é fundamental: o status da Religião é a imediatidade do Ser em si e para si. A religião consuma mesmo que desenvolvesse, como teologia, por exemplo, demonstrações fundadas na mais elevada reflexão, permanece no imediato. Ela não poderia se conhecer corretamente. Desde o momento em que se conhece como convém, perde sua imediatidade, deixa de ser ela mesma: toma-se Ciência filosófica.
Como salienta admiravelmente A. Kojève, o plano da Fenomenologia do espírito sofre, no capítulo VII, uma distorção inesperada. Enfim, tudo se consuma no fim do capítulo VI, consagrado à dialética da "bela alma", para que advenha o Saber absoluto. Nesse exato momento há uma mediação suplementar: o capitulo intitulado "Religião", que analisa as "ideologias históricas". E este capítulo é necessário: o homem da "bela alma", que foi superado, permanece abstrato; está fora da comunidade ética; aquele que deseja se lembrar do passado da humanidade para compreender, através do que se tomou, o que é o Espírito — projeto explicito da Fenomenologia do espírito — deve conhecer a progressão inconsciente que se exprime na Arte e na Religião. Arte e Religião têm por função — no cerne do empirismo lógico-histórico de Hegel — evidenciar o fato de que, ao lado das "ideologias" filosóficas e a um nível mais profundo, sem dúvida, o Pensamento desenvolve Inconscientemente, por assim dizer, suas figuras.
É isso que desconhece o Aufklarung (Iluminismo), que, absurda e arbitrariamente, considera inessencial tal forma de arte ou tal conteúdo religioso. A Arte e a Religião têm a verdade. São o caminho do Espírito, do Ser em si para si. Chegamos ao fim. O caminho, pelo qual era preciso passar, foi deixado pata trás. É sobretudo um caminho, não uma parada. Salientou-se muitas vezes — para indignar-se com ele — o pessimismo profético que Hegel manifesta em relação á Arte:
Respeitamos a Arte, a admiramos; apenas não vemos mais nela alguma coisa que não possa ser superada a manifestação intima do Absoluto, nós a submetemos à análise de nosso pensamento, e isso não com a intenção de instigar a criação de obras de arte novas, mas sobretudo com a finalidade de reconhecer a função da Arte e seu lugar no conjunto de nossa vida.
Os belos dias da arte grega e da era de ouro da Idade Média avançada se acabaram. As condições gerais do tempo presente não são muito favoráveis à Arte. O artista não está apenas desconcertado e contaminado pelas reflexões que ouve formular cada vez mais alto em torno de si, pelas opiniões e pelos juízos vigentes sobre a Arte, mas toda nossa cultura espiritual é de tal ordem que lhe é impossível, mesmo com um esforço de vontade e decisão, abstrair-se do mundo que se agita ao seu redor e das condições em que se encontra inscrito, a não ser que refaça sua educação e retire-se deste mundo, numa solidão em que possa reencontrar seu paraíso perdido.
Sob estes relatos, a Arte continua sendo para nós, quanto à sua suprema destinação, uma coisa do passado. Por isso, perdeu para nós tudo o que tinha de autenticamente verdadeiro e vivo, sua realidade e sua necessidade de outrora, e se encontra agora relegada à nossa representação.
A Religião está na mesma situação, mas em um nível superior. Também é uma coisa passada. Não façamos uso, de uma maneira que seria insultuosa, aliás, do pensamento de Nietzsche — que se situava numa perspectiva diferente —. da expressão de Hegel que citamos poucas páginas atrás. "Deus está morto". Quem viu alguma vez um conceito morrer? Deus, síntese imediata do Ser em si e para si, do finito e do infinito, deve ser colocado em seu lugar na ordem do Saber, como síntese imediata, isto é, parcial. Devemos resolver isso: o sistema hegeliano — o mesmo se dará mais tarde, com outras legitimações, com a ciência de Marx — não é sequer ateu. O Saber absoluto está, decididamente, além das oposições abstratas da metafisica.
Em suma, a tarefa da Ciência filosófica é, como indicam em seu último parágrafo as Lições sobre a filosofia da religião, mostrar "que ainda existe verdade na religião", e estabelecer "que nela se
encontra razão".
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Iniciando nas formas naturais de Religião faz uma trajetória do processo.
As ideias de Hegel se unem ao dito por Carl Gustav Jung em "Civilização em Transição" ao tratar do que ele chama de primitivos. A esses povos chamo de Povos Originários, pois são os povos já habitantes das terras quando os invasores chegaram. Erra ainda Jung por seu Eurocentrismo.
Mas admite que as práticas dos Povos Originários são perfeitamente válidas ao tratar de fenômenos acausais (sem causa definida). A Racionalidade Ocidental desconsidera tais elementos acausais. Ao passo que tais povos em tudo percebem um encadeamento possível. E muitas vezes correto.
Neste fragmento de texto, Hegel questiona a Arte e a Religião; questiona o Iluminismo, mas acaba por reafirmar o valor da Religião e da Arte. Finaliza com uma afirmativa contundente: "Existe ainda verdade na Religião, pois nela se encontra a Razão".
Trago a posição de Hegel o que não significa necessariamente minha adesão a seu pensar nesse aspecto
Paulo Cesar Fernandes
01/07/2015
Nota: Os trechos em vermelho, como citação são os trechos que Chatelet traz das obras de Hegel.
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